O CRESCIMENTO EVANGÉLICO EM PORTUGAL: UM NOVO CAPÍTULO DA FÉ NO PAÍS DO CATOLICISMO
POR TIAGO HÉLCIAS
Viver em Portugal é, inevitavelmente, viver cercado por símbolos católicos. Das igrejas centenárias que pontuam cada freguesia às procissões que ainda reúnem multidões nas aldeias, o catolicismo está entranhado na paisagem, na história e até na linguagem do povo português. Mas nos últimos anos, algo vem mudando silenciosamente — uma mudança que percebo não apenas nas estatísticas, mas também nas ruas: o crescimento do protestantismo evangélico.
Não se trata de um movimento isolado. Os Censos de 2021 já apontavam mais de 186 mil pessoas identificadas como protestantes evangélicos, o que representa mais de 2% da população portuguesa. Pode parecer pouco, mas, para um país que perdeu cerca de 240 mil católicos em uma década, é uma reviravolta significativa.
E os números mais recentes confirmam que esse crescimento não arrefeceu — pelo contrário, está a consolidar-se.
O Que Está a Acontecer
A Aliança Evangélica Portuguesa divulgou este ano um levantamento com mais de 500 líderes religiosos, mostrando que 88% das igrejas evangélicas cresceram desde 2003. Só nos últimos dois anos, houve um salto de 73% na frequência aos cultos e 44% nos batismos. O mapa desse crescimento concentra-se nas regiões mais urbanas — Grande Lisboa, Aveiro e Porto —, onde também se planeja abrir dezenas de novos locais de culto nos próximos cinco anos.
Mas números, sozinhos, não contam a história completa. Por trás das estatísticas, há trajetórias pessoais, deslocamentos e, sobretudo, um sentimento de busca — por comunidade, acolhimento e um sentido mais direto de fé.
A Influência Brasileira — e o Fator Local
É impossível ignorar o peso da imigração brasileira nesse fenômeno. Em várias igrejas que visitei — algumas pequenas, em antigos armazéns adaptados, outras modernas e cheias de tecnologia —, a sonoridade brasileira é dominante: os cânticos, o sotaque do púlpito, a energia das celebrações.
Especialistas associam parte desse crescimento à presença de imigrantes evangélicos vindos do Brasil, que trouxeram consigo não apenas a fé, mas também o modelo de igreja comunitária e participativa.
No entanto, há algo mais profundo em curso. Pesquisas recentes mostram que mais da metade dos novos convertidos nasceu em Portugal. Ou seja, o movimento já ganhou raízes locais.
Muitos portugueses, especialmente os mais jovens, têm abandonado o catolicismo tradicional e encontrado nas igrejas evangélicas uma fé mais horizontal, emocional e próxima.
A Busca por Pertencimento
O dado que mais me chama atenção é que 48% dos novos evangélicos eram católicos não praticantes.
Ou seja, não se trata de quem rejeita a religião, mas de quem se sente distante dela.
Há um evidente cansaço com estruturas hierárquicas e rituais formais.
Em muitas conversas com convertidos, ouço a mesma ideia: “na igreja evangélica, encontrei comunidade, e não apenas cerimônia”.
O perfil majoritário é feminino e jovem, o que reflete também uma mudança geracional. As novas gerações parecem buscar uma espiritualidade mais vivida do que herdada.
Há um deslocamento da fé institucionalizada para a fé experiencial — e as igrejas evangélicas têm sabido ocupar esse espaço.
Fé com Ação: A Nova Missão Evangélica
Outro aspecto que ajuda a explicar esse avanço é a forte atuação social das comunidades evangélicas.
Enquanto algumas paróquias católicas ainda se debatem com falta de fiéis e escassez de vocações, as igrejas evangélicas multiplicam projetos de apoio alimentar, aconselhamento, reforço escolar e até ajuda na procura de habitação.
De acordo com a AEP, 86% das igrejas evangélicas em Portugal participam de ações sociais regulares.
Não é raro encontrar igrejas que funcionam como verdadeiros centros de apoio comunitário — e isso, num país que enfrenta desafios de habitação e solidão crescentes, tem um impacto real.
Denominação Predominante e Legalização
Uma curiosidade que descobri na minha pesquisa é que, entre as várias denominações evangélicas presentes em Portugal, as Assembleias de Deus — através da Convenção das Assembleias de Deus em Portugal (CADP) — são hoje a denominação protestante mais numerosa e institucionalizada.
A CADP conta com mais de 400 locais de culto, cerca de 150 pastores e milhares de membros espalhados por todo o território.
Essa estrutura, presente tanto em grandes centros urbanos quanto em vilas pequenas, faz das Assembleias de Deus um dos pilares do movimento evangélico no país, com atuação social e presença comunitária marcantes.
Esse caráter mais organizado ajuda a entender como determinadas igrejas evangélicas conseguem crescer de forma sólida e sustentável. Muitas possuem rádios, editoras, escolas bíblicas e produções próprias de mídia. São exemplos de como o protestantismo português vem se tornando, aos poucos, um movimento institucionalizado e culturalmente relevante.
Abrir uma Igreja em Portugal: Legalidade, Benefícios e Critérios
Pela minha leitura e pelas conversas com líderes religiosos locais, abrir uma igreja em Portugal é possível e relativamente acessível, mas requer seguir alguns passos legais para que a comunidade tenha personalidade jurídica e possa usufruir dos benefícios fiscais previstos na Lei da Liberdade Religiosa (Lei n.º 16/2001, de 22 de junho).
Para começar, é necessário registrar a igreja como pessoa coletiva religiosa no Registo Nacional de Pessoas Coletivas (RNPC).
Esse processo envolve a criação de estatutos, definição de uma sede, nome, e fins religiosos. O registo é regulamentado pelo Decreto-Lei nº 134/2003, de 28 de junho, que estabelece o Registo de Pessoas Coletivas Religiosas (RPCR).
Uma vez inscrita, a igreja passa a ter personalidade jurídica e direitos equiparados a outras confissões legalmente reconhecidas.
Entre os benefícios fiscais, estão:
- Isenção de impostos sobre prédios ou imóveis destinados ao culto religioso;
- Possibilidade de receber 0,5% do IRS destinado voluntariamente por contribuintes;
- Deduções fiscais para doações feitas por pessoas singulares;
- Direito à propriedade de bens, organização de atividades religiosas, culturais e sociais.
Essas vantagens tornam o reconhecimento legal um passo importante para igrejas que desejam crescer de forma estruturada.
Mas é bom lembrar: embora não seja difícil reunir fiéis e começar cultos, o processo formal para ter acesso a todos os benefícios envolve burocracia, tempo e um mínimo de organização interna — algo que muitas comunidades evangélicas ainda estão a construir.
Entre a Tradição e a Liberdade
Muitos convertidos descrevem a mudança como uma libertação.
Outro dia, li uma entrevista publicada no Jornal Diário de notícias de um senhor português de nome Paulo, onde resumiu bem: “Enquanto és católico tens acesso a uma versão truncada da Bíblia. É como se tivesses um bolo inteiro e só pudesses comer uma fatia.”
Essa metáfora, que ouvi ecoar em outras conversas, traduz o desejo por uma fé mais direta, sem intermediários.
A crítica à Igreja Católica — ao celibato, à veneração dos santos, à distância institucional — convive com uma busca por autenticidade espiritual.
E é justamente aí que o protestantismo evangélico ganha terreno: na promessa de um cristianismo vivido com simplicidade, mas intensidade.
O Novo Mapa da Fé em Portugal
Portugal continua a ser, oficialmente, um país católico.
Mas quem vive aqui sabe que o mapa da fé está a mudar.
Entre a secularização crescente e a chegada de novas comunidades religiosas, a religião tornou-se menos uma herança e mais uma escolha.
Os “sem religião” cresceram mais de 400% nas últimas três décadas — um dado que revela tanto desilusão com o institucional quanto abertura ao novo.
E nesse espaço de incerteza, as igrejas evangélicas têm conseguido dialogar com uma sociedade que ainda crê, mas que já não se reconhece nas formas tradicionais de crer.
O Que Está por Vir
Apesar de todo esse crescimento, os evangélicos em Portugal ainda estão longe de exercer o mesmo poder político e mediático que possuem no Brasil.
Mas a tendência é de consolidação: há mais templos, mais jovens líderes e mais visibilidade nas redes sociais e nas periferias urbanas.
Portugal, o país que evangelizou meio mundo, começa agora a experimentar o inverso: está a ser evangelizado por dentro — e por fora — por novas vozes, novos sotaques e novas formas de viver a fé.
Testemunha ocular
Como alguém que vive em Portugal e acompanha de perto essa transformação, vejo nesse movimento um reflexo do próprio tempo em que vivemos: um tempo de reconfigurações, de fronteiras culturais e espirituais em movimento.
O crescimento evangélico não é apenas uma questão religiosa — é um espelho da sociedade portuguesa contemporânea: diversa, fragmentada e em busca de sentido.
E talvez seja esse o verdadeiro milagre em curso — não o crescimento de uma denominação, mas a redescoberta, em plena Europa secularizada, de que a fé ainda tem algo a dizer.
Tiago Hélcias é jornalista com quase três décadas de vivência no front da notícia — do calor das ruas aos bastidores da política. Atua como apresentador, redator e produtor de conteúdo em rádio, TV e plataformas digitais. É pós-graduado em Marketing Político, especialista em Comunicação Assertiva e mestrando em Comunicação Digital em Portugal.
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