SÃO CRISTÓVÃO QUER A GALINHA DOS OVOS DE OURO, MAS NÃO CUIDA NEM DO PRÓPRIO QUINTAL
POR TIAGO HÉLCIAS

Pra quem não sabe, um pedaço de minha vida foi vivido na chamada Zona de Expansão de Aracaju. Caminhei por aquelas ruas de barro quando ainda não havia sistema de esgoto, vi famílias inteiras se mudarem para lá em busca de um futuro melhor, testemunhei os primeiros condomínios surgirem em meio à completa falta de estrutura. Lembro bem: nos anos 90, um terreno ali custava entre dois e cinco mil reais. Hoje, os mesmos lotes chegam a meio milhão pra cima. É a tradução perfeita do caos urbano brasileiro: crescimento desordenado, improviso público e especulação privada.
Foram quase três décadas acompanhando essa transformação, vendo a Prefeitura de Aracaju, em diferentes gestões, instalar serviços, abrir vias, criar equipamentos públicos. A Orla Pôr do Sol é um exemplo emblemático — um cartão-postal que colocou a região no mapa turístico. De repente, surge a velha disputa judicial: São Cristóvão reivindica a posse do território.
Mas o que está realmente em jogo? Território? Patrimônio histórico? Identidade cultural? Não. O que está em jogo é dinheiro — e muito.
A linha do tempo da expansão: de fazenda a zona de conflito
Para entender a complexidade dessa briga, é preciso olhar para trás. Antes de virar palco de disputa judicial, a Zona de Expansão era sinônimo de fazenda, coco e veraneio. No século XX, grande parte daquela região — especialmente o que hoje conhecemos como Aruana — pertencia ao industrial Melício Machado, nada menos que o maior produtor de coco do Brasil. Sim, antes dos condomínios luxuosos, aquilo era um verdadeiro mar de coqueiros, um paraíso privado.
Naquela época, chegar lá era quase uma expedição. Distante do centro urbano, com acesso difícil, a área se transformou em refúgio de fim de semana para as famílias mais abastadas de Aracaju. Meu avô, Luciano Nascimento, contava histórias: pegar estrada para passar férias naquelas praias era privilégio de poucos, uma aventura que misturava poeira, isolamento e o luxo de fugir da cidade.
O que antes era só veraneio, foi se urbanizando, se conectando com a malha de Aracaju, crescendo de forma orgânica — e, segundo a Justiça, irregular — até ser absorvido pela capital. É a encruzilhada perfeita: um pedaço de terra que nasceu rural, se tornou urbano e agora é disputado a canetadas entre prefeitos, advogados e desembargadores. De paraíso particular a zona de conflito.
Leis antigas e plebiscitos que nunca existiram
Fui pesquisar: A Lei 554 de 1954 definiu os limites administrativos do estado, mas a vigência formal prevista até 1958 virou um documento eterno, graças à tal ultratividade.
Para esclarecer: ultratividade é quando uma norma, mesmo sem vigência formal, continua a produzir efeitos jurídicos sobre fatos ocorridos posteriormente. Ou seja, uma lei “caducada” passa a funcionar como se ainda estivesse vigente, mantendo seu poder de regular territórios, impostos e direitos. No caso da Zona de Expansão, isso significa que decisões baseadas nessa lei antiga ainda impactam bairros, famílias e arrecadação fiscal, mesmo após décadas. Um verdadeiro exemplo de como o formalismo jurídico se sobrepõe à realidade da vida das pessoas.
A Constituição Estadual de 1989 tentou alterar essa linha de fronteira, mas dependia de plebiscito — nunca realizado. Resultado? Uma população de quase 30 mil pessoas nunca foi ouvida, jamais teve direito de opinar.
E é aqui que o absurdo se torna político. Enquanto prefeitos, tribunais e advogados discutem linhas imaginárias no mapa, quem vive ali é tratado como mero número. Não há consulta popular, não há debate real, só decisões que mexem com a vida das pessoas, sem que elas participem. É a desumanização da geografia.
Quanto vale a Zona de Expansão?
Vamos às contas. Estimativas não oficiais apontam que só em IPTU e ITBI a arrecadação da região ultrapassa dezenas de milhões de reais por ano. Some a isso o ISS gerado por condomínios, comércios e serviços que não param de brotar por ali, e chegamos a uma cifra respeitável — algo que pode sustentar secretarias inteiras de uma prefeitura.
É por isso que essa disputa não é meramente jurídica, mas essencialmente política. É a luta por uma nova fronteira de arrecadação. E aqui está a verdade incômoda: quando políticos falam em “pertencimento”, “tradição” ou “justiça histórica”, o que eles realmente estão dizendo é: “quero a sua receita tributária na minha conta”.
Justiça sem povo é sentença vazia
E aqui entra algo que me intriga e indigna: como é que uma decisão desse porte em pleno 2025, capaz de mudar a vida de 30 mil pessoas, foi tomada sem que o povo fosse ouvido? Muito me admira a Justiça não ter considerado, em nenhum momento, a opinião dos moradores que construíram, bem ou mal, suas casas e suas histórias na Zona de Expansão.
Decidir o destino de uma comunidade inteira sem consulta popular é um atestado de que, no Brasil, a democracia vale até a página dois. Quando interessa, fala-se em “soberania popular”. Mas quando não interessa, basta uma canetada para rasgar o pertencimento de milhares de pessoas.
O calcanhar de Aquiles de São Cristóvão
E tem mais: São Cristóvão mal dá conta das próprias áreas mais populosas, como Eduardo Gomes e Rosa Elze, que padecem de problemas estruturais básicos. Se a cidade não consegue oferecer saneamento, mobilidade e serviços de qualidade para bairros que já existem, como vai gerir uma região que hoje é um dos motores imobiliários e turísticos de Sergipe?
Parece brincadeira, mas não é. O que São Cristóvão quer é abocanhar a galinha dos ovos de ouro sem ter demonstrado capacidade de cuidar sequer do próprio quintal.
E o futuro?
Enquanto isso, a Zona de Expansão continua crescendo, atraindo investimentos, acumulando problemas de mobilidade, saneamento e segurança. Os moradores ficam à mercê de uma briga jurídica que, no fim, pouco se preocupa com suas vidas e muito com cofres públicos e arrecadação.
No fundo, essa disputa não é sobre território. É sobre poder, dinheiro e a velha incapacidade brasileira e sergipana de planejar cidades para as pessoas — e não para os mapas e os caixas da prefeitura.
Até quando? Aguardemos cenas dos próximos capítulos.
Tiago Hélcias é jornalista com quase três décadas de vivência no front da notícia — do calor das ruas aos bastidores da política. Atua como apresentador, redator e produtor de conteúdo em rádio, TV e plataformas digitais. É pós-graduado em Marketing Político, especialista em Comunicação Assertiva e mestrando em Comunicação Digital em Portugal.
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