ANISTIA: UMA VIAGEM NO TEMPO ENTRE 1979 E 2025 - QUANDO O PERDÃO VIRA ARMA NA MÃO DA CONVENIÊNCIA
POR TIAGO HÉLCIAS
A Memória é Curta, Mas o Arquivo é Vasto
Ah, a anistia! Essa palavrinha mágica que, dependendo da década, pode soar como um hino à liberdade ou como um tapa na cara da justiça.
No Brasil, o termo carrega uma carga histórica monumental. Em 1979, marcou a transição da ditadura militar para a abertura política; em 2025, volta aos holofotes como um fantasma incômodo nas discussões sobre os atos de 8 de janeiro de 2023.
O que proponho aqui é uma viagem no tempo: de um lado, a Lei da Anistia de 1979, o “grande perdão” que libertou presos políticos, trouxe exilados de volta e blindou militares de responsabilização; do outro, o debate atual, em que setores clamam por uma nova anistia para os envolvidos na “tentativa de golpe” contra as instituições democráticas. No meio, Lula, o camaleão da política brasileira, que já vestiu a camiseta “Anistia Já” e hoje ergue a bandeira do “Sem Perdão”.
A Anistia de 1979: O Grande Perdão da Ditadura (e Seus Detalhes Peculiares)
Em 28 de agosto de 1979, João Figueiredo, último presidente militar, sancionou a Lei nº 6.683 — a famosa Lei da Anistia. Oficialmente, seu objetivo era promover a “pacificação nacional”. Na prática, funcionou como um pacto: a oposição teria de volta seus exilados e presos políticos; os militares, por sua vez, ganhariam imunidade contra futuras acusações por tortura, assassinatos e desaparecimentos.
A lei concedeu anistia a crimes políticos e também a “crimes conexos”. E é aí que mora a polêmica. “Conexo” virou palavra mágica para colocar na mesma balança panfletagem, sequestros, assaltos a banco, greves proibidas — e, do outro lado, choques elétricos, estupros, assassinatos e ocultação de cadáveres. Uma mão lavando a outra, num equilíbrio que só o Brasil seria capaz de chamar de justiça.
Segundo levantamentos, milhares de pessoas foram beneficiadas: militantes de esquerda perseguidos, jornalistas, artistas, exilados como Leonel Brizola, Miguel Arraes e Luís Carlos Prestes — mas também agentes do Estado envolvidos diretamente na repressão. A campanha “Anistia Já” foi resultado de uma mobilização social massiva, liderada por sindicatos, intelectuais, estudantes, artistas e movimentos de direitos humanos. Panfletos, greves, protestos e até canções clandestinas ecoavam o pedido por perdão.
O debate jurídico persiste até hoje: torturadores foram ou não anistiados? O STF já reconheceu em várias ocasiões que a lei beneficiou “os dois lados”, mas grupos de direitos humanos sustentam que crimes de tortura e desaparecimento forçado são imprescritíveis e não poderiam estar sob o guarda-chuva da anistia. Em resumo: a ferida segue aberta.
Quem Era Quem: Entre a Resistência e a Repressão
A década de 70 no Brasil foi marcada por um jogo perigoso. De um lado, grupos guerrilheiros como a ALN (Ação Libertadora Nacional), fundada por Carlos Marighella, e o MR-8, que chegou a sequestrar o embaixador americano Charles Elbrick em 1969. Outros movimentos, como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e o PCdoB, recorreram a ações armadas contra o regime. Essas organizações justificavam a luta armada como resposta ao fechamento total das vias democráticas.
Do outro lado, o Aparato Repressivo da Ditadura: DOI-CODI, DOPS, OBAN. Nomes como Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra ficaram associados à tortura e ao desaparecimento forçado. A anistia, em 1979, acabou apagando a linha que separava guerrilheiros que mataram em nome da revolução e militares que mataram em nome da “ordem”. No fim, todos foram perdoados.
A ironia? O Brasil foi um dos poucos países da América Latina que, após a ditadura, preferiu esquecer em vez de julgar. Na Argentina e no Chile, por exemplo, generais foram parar atrás das grades. No Brasil, viraram comentaristas de TV a cabo e nomes de ruas.
Lula em 1979: O Sindicalista Anistiado
Em meio a esse turbilhão, surge um jovem líder sindical: Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Perseguido por organizar greves ilegais, chegou a ser preso e enquadrado na Lei de Segurança Nacional. A anistia lhe devolveu direitos políticos, deu fôlego à sua trajetória e abriu caminho para a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980.
Há registros icônicos de Lula e outros militantes com camisetas estampadas com o grito “Anistia Já”. Para ele e seus aliados, o perdão era símbolo de justiça, de vitória contra o autoritarismo. Lula foi, sem exagero, um dos rostos mais emblemáticos da luta pela anistia — ainda que naquele momento os beneficiados fossem muito mais amplos do que o discurso da esquerda fazia parecer.
Lula em 2025: O Presidente da Linha Vermelha
Corta para 2025. Lula está no poder pela terceira vez e vê sua base pressionada por aliados de centro e pela oposição a discutir uma nova anistia — desta vez, para os envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas e depredadas.
E a resposta dele? Um sonoro “Não”!
Lula afirma que anistiar os golpistas seria um atentado contra a democracia e um convite à impunidade. Para ele, em 1979 a anistia libertava quem lutava contra a ditadura; em 2025, ela absolveria quem tentou derrubar um governo eleito democraticamente. Nas palavras do presidente, a diferença é abissal: “Lá, eram heróis; aqui, são criminosos”.
A ironia não passa despercebida: o mesmo Lula que foi salvo pela anistia em 79 hoje nega esse benefício a quem o vê como inimigo. A frase poderia ser adaptada: “Com meus amigos, a anistia; com meus inimigos, a lei.”
Anistia 1979 vs. 2025: Um Jogo de Espelhos
Coloquemos as duas anistias lado a lado.
- 1979: crimes políticos e conexos; perdão amplo para militantes e militares; passo rumo à abertura democrática.
- 2025: crimes contra o Estado Democrático de Direito; atos de destruição, depredação e tentativa de golpe; proposta de perdão ainda em debate no Congresso.
Em Brasília, o tema segue quente: projetos de anistia circulam entre parlamentares ligados ao bolsonarismo, enquanto o Planalto e a base governista articulam para barrar qualquer avanço. A oposição pinta os envolvidos em 8 de janeiro como “presos políticos”, enquanto o governo insiste que são “golpistas condenados”.
O paralelo é inevitável: em 79, o perdão ajudou a costurar a transição; em 2025, a dúvida é se uma nova anistia abriria caminho para reconciliação ou para a banalização da violência política.
Conclusão: A Anistia como Termômetro da Democracia
A anistia sempre foi mais do que uma lei. Foi — e continua sendo — um termômetro da democracia. Em 1979, simbolizou a esperança de um Brasil livre, mas também a covardia de não enfrentar torturadores. Em 2025, surge como dilema: será perdão a inocentes injustiçados, ou salvo-conduto a quem quis rasgar a Constituição?
E é impossível não colocar a lupa em Lula. O jovem sindicalista que, em 1979, estampava no peito “Anistia Já” hoje, como presidente, grita “Anistia Jamais”. Mudou a convicção? Não. Mudou a conveniência. Lula sempre foi um político moldado pela sobrevivência e pelo cálculo. Quando precisava de anistia, era libertação. Quando não precisa, é ameaça à democracia. No fim, o que vale não é o princípio, mas o lado da trincheira em que está.
Essa é a verdadeira ironia histórica: o homem que construiu sua carreira com o perdão coletivo agora é o guardião intransigente da punição seletiva. Lula veste a Constituição como quem veste um terno sob medida — só quando lhe cai bem.
Resta a pergunta: a anistia de 2025 será lembrada como reconciliação, impunidade ou como mais uma vitrine das incoerências políticas de um Brasil que insiste em repetir seus fantasmas?
Tiago Hélcias é jornalista com quase três décadas de vivência no front da notícia — do calor das ruas aos bastidores da política. Atua como apresentador, redator e produtor de conteúdo em rádio, TV e plataformas digitais. É pós-graduado em Marketing Político, especialista em Comunicação Assertiva e mestrando em Comunicação Digital em Portugal.
Comentários