A POLÍTICA QUE MATA — SOBRE ÓDIO, SILÊNCIO E A LETALIDADE DO DEBATE POLÍTICO
POR TIAGO HÉLCIAS
Eu não escrevo este texto para confortar ninguém. Escrevo porque, como jornalista e cidadão, observo — e não posso calar — uma contradição brutal entre o que muitos setores da esquerda pregam nas redes e nas tribunas (tolerância, pluralismo, paz) e o que, na prática, se repete em episódios de violência que ceifam vidas ou tentam ceifar carreiras e vozes dissidentes. Não se trata de fazer um inventário de vítimas para provocar “equivalência moral” automática; trata-se de olhar para fatos concretos, tirar as conclusões que os números e as cenas exigem e perguntar: até que ponto a retórica radicalizada legitima a eliminação do adversário?
Eu vou direto ao ponto: relato quatro casos que, juntos, formam uma narrativa inquietante — e depois destrincho as implicações. Faço isso sem romantizar militância alguma e condenando qualquer violência. Mas também sem virar as costas à realidade que vejo com meus próprios olhos.
Os fatos — quando a palavra vira bala
Charlie Kirk (EUA, 10 de setembro de 2025). O ativista conservador Charlie Kirk foi morto a tiros durante um evento universitário; o suspeito, apontado pelas autoridades como Tyler Robinson, foi preso depois de informações que ligaram o jovem ao crime. A cena — um ato público transformado em cena de crime — reverberou com força entre conservadores que dizem sentir-se alvos de uma escalada letal.
Donald Trump (EUA, 13 de julho de 2024). Não é suposição: houve uma tentativa de assassinato contra o então pré-candidato Trump durante um comício. O autor foi detido e processos federais foram acionados, e o episódio entrou para a narrativa de que a política nos EUA atingiu um patamar em que alguém busca tirar do jogo, fisicamente, um líder populista.
Jair Bolsonaro (Brasil, 6 de setembro de 2018). O ataque a faca em Juiz de Fora é um marco da polarização brasileira: o agressor foi preso em flagrante, o caso teve repercussão massiva e alimentou dúvidas, teorias e ressentimentos que perpassam a política nacional até hoje. Não esquecer: a violência aqui alterou o curso de uma eleição e se transformou em símbolo.
Miguel Uribe Turbay (Colômbia, 7 de junho de 2025 — falecido em 11 de agosto de 2025). Um senador e pré-candidato foi baleado durante um comício, ficou meses em luta pela vida e acabou morrendo em consequência dos ferimentos. Autoridades e imprensa trataram o caso como magnicídio e a comoção nacional mostrou que a América Latina segue com a política exposta ao risco físico extremo.
E tantos outros…
O padrão — não são apenas “casos isolados”
Se você somar os elementos desses episódios — comícios, comovimento público, agressores que atacam alvos políticos, o uso de armas letais ou a intenção clara de silenciar alguém — começa a emergir um padrão: a politização da violência. Em cada um desses casos houve contexto ideológico, comunicação massiva antes e depois, e uma narrativa pública que rapidamente converte o fato em símbolo: vítima contra inimigo. Não estou dizendo que exista uma única cadeia causal que conecta todos os episódios — seria óbvio e grosseiro —, mas é ingenuidade negar que, sob a polarização, a linha entre discurso e ação tornou-se perigosamente tênue.
Hipocrisia dupla: o que se diz e o que se faz
A esquerda moderna (assim como a direita) construiu um vocabulário de direitos, inclusão e “viver e deixar viver”. Mas quando a retórica vira anatemização do oponente — rotulando-o como fascista, inimigo da humanidade, criminoso moral — o efeito prático é previsível: alguns indivíduos usam essa linguagem como autorização moral para agir. Aqui cabe um ponto desconfortável: discursos que desumanizam o adversário não nascem no vazio; alimentam-se de ecos nas redes sociais, de jornalismo inflamado e de lideranças que tratam o inimigo como menos que cidadão.
Do outro lado, conservadores acreditam — com base em episódios concretos e em narrativas públicas — que há uma campanha contínua de silenciamento, que vai do cancelamento digital à violência física. Se a esquerda insiste em distinguir a retórica pública da ação privada quando convém, é legítimo perguntar por que tanta dificuldade em nomear e combater a violência quando ela atinge seus próprios (ou quando seus símbolos se tornam alvo).
O efeito prático: medo, autocensura e erosão democrática
Quando figuras públicas passam a temer pela própria integridade física por conta de suas posições políticas, a democracia empobrece. O resultado é previsível: jornalismo recua, intelectuais autocensuram-se, debates perdem densidade e ganham medo. Vivemos um paradoxo: num tempo em que a tecnologia amplia a voz, muitos preferem calar para não virar alvo. Isso não é teoria; é constatação que atravessa círculos políticos em vários países.
Contra-argumentos que não podemos ignorar
você pode até achar que eu estou simplificando: violência política existe de vários lados. Concordo. Há episódios de violência motivada por ódio de direita também; a barbárie não tem monopólio ideológico. E é essencial que cada crime seja investigado com rigor e que a justiça puna — sem seletividade — quem ataca o outro fisicamente. Também é verdade que nem todo agressor é “um produto da esquerda” ou “um produto da direita”: fatores pessoais, psicológicos e sociais pesam. Mas negar o papel que discursos e cultura política têm na criação de permissividade para o uso da força é tapar o sol com a peneira.
Violência na própria pele
E aqui, permitam-me abrir um parêntese. Eu sei exatamente do que estou falando. Sempre fui combativo, sempre falei verdades que incomodaram — e ainda incomodam — grupos políticos poderosos por onde passei, seja da esquerda ou da direita. Senti na pele o que é ser tratado como inimigo só por não pensar igual. Já fui chamado de facista, de irresponsável, de aproveitador. Já vi amigos de décadas torcerem o nariz em grupos de WhatsApp, mandarem emojis de deboches, mudarem completamente a forma de me enxergar por causa dos meus posicionamentos. E digo mais: eu não escrevo para agradar, não escrevo em busca de aplauso ou concordância. Não escrevo para agradar nem para conquistar aprovação. Escrevo para externar o que penso, doa a quem doer. Divergência é legítima e até salutar, mas transformar opinião em crime é um passo perigoso para qualquer sociedade.
Efeito global
E esse problema não é algo isolado, tampouco restrito ao Brasil. É um fenômeno global. Javier Milei, na Argentina, foi alvo de constantes campanhas de hostilidade e ameaças. Giorgia Meloni, na Itália, tornou-se alvo de ataques sistemáticos de difamação apenas por defender pautas conservadoras. Aqui em Portugal, já não são poucos os casos de censura velada e intimidação contra quem ousa contrariar a narrativa progressista. Em países como Espanha, França e até nos Estados Unidos, a narrativa da “defesa da democracia” tem servido de escudo para a perseguição implacável a adversários políticos, para aqueles que vão de encontro a chamada “agenda woke”.
A contradição é evidente: o discurso apaziguador e democrático convive lado a lado com a prática da intolerância, da criminalização da divergência e, em casos extremos, da violência física. Estamos diante de uma realidade em que a liberdade de expressão corre risco real de extinção, e não por acaso já se diz que, hoje, se morre não pelo que se faz, mas pelo que se diz.
Por fim, e como se não bastasse a morte de pessoas, no caso de Charlie Kirk, é inadmissível, é inaceitável acompanhar nas redes sociais o que vimos acontecer. É um absurdo como essas plataformas, que têm um lado positivo, mas também um lado extremamente sombrio, acabam dando palco e megafone para gente inescrupulosa, para vermes travestidos de cidadãos, que tiveram a coragem de comemorar a morte do ativista conservador americano.
A que ponto o ser humano chegou? Celebrar a morte de alguém simplesmente por pensar diferente? Isso não é apenas inaceitável. É imoral, é repugnante, é desumano — e revela o abismo em que a nossa civilização está se jogando.
Tiago Hélcias é jornalista com quase três décadas de vivência no front da notícia — do calor das ruas aos bastidores da política. Atua como apresentador, redator e produtor de conteúdo em rádio, TV e plataformas digitais. É pós-graduado em Marketing Político, especialista em Comunicação Assertiva e mestrando em Comunicação Digital em Portugal.
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