500 EUROS POR UMA CABEÇA BRASILEIRA: O ÓDIO SEM FREIOS EM PORTUGAL
POR TIAGO HÉLCIAS
Quando decidi cruzar o Atlântico, confesso: também comprei o pacote completo do sonho europeu com direito a pastel de nata e sotaque charmoso. Afinal, Portugal era aquela “casa da tia” onde sempre havia espaço para mais um. Mas a realidade, meus caros, é que muitas vezes o abraço de boas-vindas dá lugar a olhares tortos, portas fechadas e, em alguns casos, ódio escancarado.
Primeiro, não quero aqui cometer o erro de generalizar — tenho amigos portugueses incríveis, gente espetacular que abre a casa, a vida e o coração. Mas não posso negar que toda essa cortesia está virando exceção. Infelizmente a regra por cá gira em torno de uma onda de xenofobia que cresce assustadoramente. É como tentar dizer que o bacalhau não está salgado.
O caso João Oliveira: 500 euros por uma cabeça
Não, você não leu errado. Não é piada de mau gosto. É a realidade nua, crua e vergonhosa.
João Oliveira, morador de Aveiro, gravou um vídeo oferecendo 500 euros por uma cabeça de brasileiro, “cortada rente no pescoço”. Publicou no TikTok como quem posta receita de caldo verde. O vídeo, claro, viralizou — porque a internet é também a maior vitrine de barbaridades e de idiotas que existe.
A reação foi rápida: denúncia no Ministério Público, investigação aberta pela PSP, nota de repúdio da Casa do Brasil e até a padaria onde o “brincalhão” trabalhava resolveu demitir o funcionário para evitar que o forno fosse usado para assar mais uma barbaridade. Mas, cá entre nós, quem vive aqui sabe: o que mais choca não é o ato isolado, é a certeza de impunidade que dá coragem para esse tipo de coisa.
A realidade que não cabe em post de indignação
Esse episódio é só o topo de um iceberg que está cada vez mais difícil de ignorar.
De 2019 a 2024, os casos de crimes de ódio registrados pela Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância - ECRI, saltaram de 63 para 327. E, se depender dos números, 2025 não será diferente.
E os relatos? Vêm de todos os cantos:
- Racismo explícito: Gente sendo chamada de “macaca” ou “puta” no meio da rua.
- Preconceito velado: Dificuldade para alugar casa ou conseguir emprego, mesmo com todos os documentos em dia.
- Bullying linguístico: O famoso “fala inglês, por favor”, porque o português daqui parece mais digno que o nosso.
- Hipersexualização das mulheres brasileiras: E nem adianta explicar que não, não estamos aqui “para isso”.
- Racismo estrutural: Negros brasileiros que ouvem absurdos no trabalho, tratados como se estivessem em pleno século XIX.
E sabe o que é pior? Grande parte da população finge que não vê. Ou, quando vê, tenta minimizar: “Ah, mas isso é só um ou outro”, “é brincadeira”. Pois é…, são situações que já são suficientes para transformar vidas em pesadelos diários.
A extrema-direita e o combustível do ódio
Enquanto isso, partidos de extrema-direita como o Chega! seguem surfando essa onda suja, pintando imigrantes como os grandes vilões da crise econômica e da insegurança. O discurso é simples: a culpa é sempre “do outro”. E adivinha quem é o “outro” da vez? Pois é, a gente.
Impunidade: a senha para o próximo ataque
No Brasil, racismo é crime com pena de prisão. Aqui, muitas vezes, não passa de um “ai, ai, ai, não faça mais isso”.
E quando a punição não vem, o medo cresce. Sete em cada dez brasileiros que sofrem xenofobia em Portugal sequer denunciam. É o medo de gastar dinheiro, de não serem levados a sério, ou simplesmente de nada acontecer. Porque, convenhamos, nada é mais frustrante do que dar depoimento e, meses depois, ver o agressor tomando um café tranquilo ma mesma freguesia.
Nem santo, nem demônio: só gente
Agora, vamos combinar: eu não estou aqui para pintar o brasileiro como santo. Tem muito brasileiro fazendo merda por aqui, sim — muita mesmo. Mas caráter, ou a falta dele, não é exclusividade de passaporte. Brasileiro faz besteira em Portugal? Faz. Português faz besteira no Brasil? Também faz. Porque mau-caratismo não tem nacionalidade; é um defeito de fabricação da espécie humana.
E, apesar dos casos negativos que todo mundo adora usar como desculpa para generalizar, há milhares de brasileiros que vieram para cá em busca de uma vida digna, que trabalham duro, pagam impostos, empreendem, possuem bons currículos, cumprem suas obrigações e ajudam a mover a economia desse país. Esse é o imigrante que Portugal precisa aprender a valorizar.
Por isso, quando alguém me solta aquele clássico “volta para a tua terra”, eu tento respirar fundo e responder, com toda a “calma” do mundo: minha terra é aqui!!
É aqui que eu decidi recomeçar, construir uma nova história e ampliar as oportunidades que o meu próprio país me negou. E enquanto eu estiver aqui, vou continuar dizendo, sem medo e sem baixar a cabeça: respeito não é favor, é direito.
Portugal, é hora de olhar no espelho
Não, não é só um problema de alguns malucos isolados. É estrutural, é social, é político.
E enquanto fingirmos que não existe, a coisa só vai piorar.
Para Portugal que gosta de se apresentar ao mundo como terra de acolhimento e oportunidades, fica o recado: o discurso bonito não está combinando com a prática.
Porque, no fim das contas, diversidade é riqueza — e respeito é o mínimo que qualquer sociedade que se diz civilizada deveria oferecer.
Tiago Hélcias é jornalista com quase três décadas de vivência no front da notícia — do calor das ruas aos bastidores da política. Atua como apresentador, redator e produtor de conteúdo em rádio, TV e plataformas digitais. É pós-graduado em Marketing Político, especialista em Comunicação Assertiva e mestrando em Comunicação Digital em Portugal.
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