VAZA TOGA 2: QUANDO A JUSTIÇA VIRA ROTEIRISTA E A LEI, MERA COADJUVANTE
POR TIAGO HÉLCIAS
Foi-se o tempo em que juiz era árbitro. Agora, pelo que mostram os vazamentos da vez, tem ministro do Supremo que virou roteirista, diretor e até ator principal de um espetáculo que parece mais distópico que jurídico.
O episódio ganhou o nome de “Vaza Toga 2”, mas poderia se chamar “Justiça Paralela: o Retorno”, ou “Ministro & Cia. — O Gabinete da Verdade Única”.
As revelações feitas pelo jornalista norte-americano Michael Shellenberger — e aprofundadas por David Ágape e Eli Vieira — expõem um grupo dentro do Judiciário supostamente dedicado a montar um verdadeiro gabinete de dossiês. Missão: vasculhar redes sociais de presos do 8 de janeiro antes de qualquer decisão sobre liberdade. O objetivo? Coletar “provas” que sustentassem as detenções. Tudo isso antes mesmo da tal audiência de custódia.
Sim, é isso mesmo. O que era para ser um ato de revisão da prisão virou encenação — com direito a script prévio. E a frase que mais me chamou atenção, vazada de um grupo de assessores ligados ao gabinete de Moraes, foi essa:
“Que nas audiências de custódia possamos dar a cada um o que lhe é de direito: a prisão.”
A prisão. Como direito. Como destino. Como castigo previamente definido.
Nem em “Black Mirror” os roteiristas tiveram tanto arrojo.
A linha entre justiça e vendeta ideológica
O mais assustador é perceber que o princípio acusatório, aquele que separa juiz de acusador, virou apenas um detalhe flexível — porque o STF resolveu que sim, pode flexibilizar. Aliás, pode tudo. Basta não chamar de arbítrio. Chama de “defesa da democracia” e está tudo resolvido.
E então a pergunta: que democracia é essa que não suporta um post em rede social?
Gente presa por dizer “intervenção federal” ou “cumprir a Constituição não é golpe”.
Para alguns ministros, parece que o algoritmo vale mais que a audiência.
Segundo a Gazeta do Povo, o modus operandi se aproxima perigosamente do modelo chinês de vigilância — aquele onde o pensamento é policiado antes da ação. Por aqui, um like errado pode virar evidência de periculosidade.
Cadê a reação institucional?
A PGR, que segundo os vazamentos chegou a pedir liberdade provisória para vários acusados, foi solenemente ignorada. O Supremo resolveu operar por conta própria, em grupo de WhatsApp. E é esse tipo de “agilidade judicial” que faz ruir qualquer ilusão de imparcialidade.
Mais grave ainda: esse material sequer foi disponibilizado à defesa. Teve acusado que passou meses preso sem saber que a justificativa estava escondida num grupo de zap do gabinete.
É ou não é motivo para CPI?
Um silêncio ensurdecedor
Enquanto tudo isso pipoca na imprensa internacional e alternativa, os grandes veículos tratam o caso com constrangido silêncio. STF e TSE fingem que não é com eles. E o Congresso? Dorme. Não vê. Ou finge não ver. Medo? Conivência? Parte do jogo?
Fico me perguntando se esse silêncio generalizado não é o sintoma mais claro de que passamos dos limites faz tempo.
Minha leitura
Pode chamar de paranoia, exagero ou teoria da conspiração — eu chamo de um processo de corrosão institucional que ninguém mais se dá ao trabalho de disfarçar.
Um juiz que investiga, acusa, julga e sentencia… tudo no mesmo ato. Sem contraditório, sem defesa real, sem freios. E com gente presa por “opinião”.
Quando tudo vira ameaça à democracia, aí é que a própria democracia começa a correr risco.
E não se trata aqui de defender baderneiro de 8 de janeiro, não. Quem invadiu prédio público tem que responder. Mas tem que ser no devido processo legal. Não nesse tribunal de exceção disfarçado de salvador da pátria.
Porque a pergunta que martela é: quem vigia os que dizem nos vigiar?
Tiago Hélcias é jornalista com quase três décadas de vivência no front da notícia — do calor das ruas aos bastidores da política. Atua como apresentador, redator e produtor de conteúdo em rádio, TV e plataformas digitais. É pós-graduado em Marketing Político, especialista em Comunicação Assertiva e mestrando em Comunicação Digital em Portugal.
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