UM GRITO DE ALERTA: QUANDO O “SONHO EUROPEU” ESCANCARA A DURA REALIDADE DO MERCADO DE TRABALHO EM PORTUGAL
Por Tiago Hélcias
Um desabafo real nas redes sociais inspira esta crônica sobre a precariedade das relações de trabalho em Portugal e o que muitos imigrantes — e portugueses — enfrentam no dia a dia. Um alerta necessário, sem filtros.
Tem encontros que a gente só tem porque a vida e a internet resolveram dar as mãos. Foi o que aconteceu com Luiz Moureira. Trabalhamos juntos na TV Pajuçara, em Alagoas. Ele, mais nos bastidores da publicidade; eu, no front do jornalismo. Nossos caminhos se cruzavam pouco — mas o respeito, esse sempre ficou. Anos depois, Luiz surgiu no meu feed. Agora morando no Porto, em Portugal. E, em vez de uma paisagem europeia ou de um pastel de nata ao entardecer, ele compartilhou um desabafo amargo — e corajoso — sobre sua vivência profissional no país que, para muitos, é o sonho europeu.
Não era um texto genérico. Era sobre ele. Sobre o que viu, o que viveu e o que sentiu na pele. Situações que envolvem pressão desumana no ambiente de trabalho, ausência de pausas até para necessidades básicas, salários divididos ou atrasados, e uma constante sensação de impotência diante da precariedade.
A lista do descaso, a lista da vergonha, são infinitas — e, pior, muito, muito comuns, tanto entre portugueses quanto entre imigrantes. A gente, quando já está aqui, ouve essas histórias com frequência assustadora, quase como se fossem parte do pacote da imigração silenciosa. Mas o Luiz… o Luiz resolveu contar. E contou com detalhes, sem filtro, sem floreio — no nu e cru daquilo que muita gente vive e cala.
“Sair às 23h30, chegar em casa à meia-noite e meia, e no dia seguinte entrar às 7h30. Fazer xixi numa garrafa no estoque porque só havia um funcionário por turno, e se algo fosse roubado enquanto eu saísse, eu teria que pagar.”
E isso foi só o começo. O desabafo seguiu com relatos que escancaram o que se passa nos bastidores do tão idealizado ‘emprego na Europa’:
“Sofri um acidente de trabalho e, durante minha baixa médica, a empresa trocou de seguradora. Resultado: não terminei o tratamento, fiquei sem assistência médica e sem emprego, curando em casa uma ferida causada pelo trabalho.”
“Ser terceirizado significava não poder usar nem o banheiro dos outros funcionários. Mesmo prestando serviço na mesma empresa, era como se a gente fosse de segunda classe.”
É nesse ponto que a ilusão racha. Que o feed colorido dá lugar à realidade cinza. Porque a Europa das redes sociais é uma. A Europa da jornada abusiva, da invisibilidade trabalhista e do silêncio imposto — essa é outra. E ela está mais próxima do que você imagina.
Luiz não tentou representar todos os imigrantes. Mas o que ele escreveu ressoa em muitas outras vozes que, por medo ou exaustão, escolhem o silêncio. Foi esse eco que me fez transformar o relato em crônica. Porque há coisas que não podem passar batido.
Quando a gente se dá conta de que o Brasil protege mais do que parece
A gente tem mania de falar do Brasil — às vezes com razão, outras com um certo exagero. Mas quando você está fora e começa a trabalhar em outro país, percebe que a tal CLT, por mais atacada que seja, ainda é um abrigo importante.
No Brasil, trabalhador com carteira assinada tem direito a 13º, férias remuneradas com adicional, hora extra paga com acréscimo, FGTS, seguro-desemprego, adicionais noturno, de periculosidade, de insalubridade, entre outros. Sem falar na Justiça do Trabalho — que, embora lenta em muitos casos, é gratuita, especializada e, na maioria das vezes, acessível.
A estrutura é cheia de falhas, claro. Mas ela existe. E isso faz uma diferença enorme. O trabalhador brasileiro, mesmo em situações difíceis, sabe que há mecanismos legais de defesa. Em Portugal, essa rede de proteção é muito mais frágil — especialmente para quem vem de fora.
Em Portugal, o papel é bonito — mas a prática machuca
Portugal tem leis trabalhistas bem formatadas. Código do Trabalho, jornada de 40 horas semanais, férias de 22 dias úteis, subsídio de férias e de Natal. Tudo parece certinho, europeu, moderno.
Mas Luiz, no seu desabafo, nos lembrou que o papel aceita tudo — o chão da fábrica, do escritório ou da loja é que mostra a realidade.
E a realidade, para muitos, é dura. Trabalhadores com jornadas prolongadas sem pausas, contratos frágeis, salários que mal cobrem o aluguel, pressão constante por produtividade, e pouca ou nenhuma fiscalização para coibir abusos. E isso vale não só para imigrantes. Os próprios portugueses vivem essa precarização — tanto que muitos jovens, recém-formados e qualificados, deixam o país rumo a outros destinos europeus, em busca de condições de trabalho mais dignas e oportunidades reais de crescimento, com melhores salários.
É triste pensar que um país tão acolhedor como Portugal não consiga reter seus próprios talentos, e os que vem de fora, porque o mercado de trabalho os empurra para fora.
O silêncio imposto pelo medo
O que Luiz descreveu é só uma das versões desse enredo. Há muitas outras, semelhantes, que se repetem diariamente em lojas, cafés, escritórios, obras e escritórios de contabilidade. Imigrantes e portugueses vivendo sob pressão, sem voz.
Porque reclamar pode custar o emprego. E, no caso dos imigrantes, pode significar perder o visto, atrasar o processo na AIMA, ou virar alvo de xenofobia.
Isso precisa ser dito com todas as letras: a precarização não é exclusividade de quem vem de fora — mas o peso do silêncio é. É muito mais difícil falar quando se sabe que sua permanência no país depende de não incomodar, de ser “bom”, “submisso”, “discreto”.
E aí, quando se tenta levantar a voz, surgem os comentários padrão:
“Se não está satisfeito, volta pro seu país.”
Pois bem. Estamos aqui, sim, fora do nosso país. Mas estamos trabalhando, pagando impostos, cumprindo regras. Temos o direito de apontar o que está errado. Não estamos sendo ingratos. Estamos sendo conscientes.
Portugal tem muitas belezas — mas precisa olhar para dentro
Não se trata de negar o que Portugal tem de bom. É um país encantador, com segurança, história, cultura, beleza. Mas no que diz respeito ao mundo do trabalho — especialmente no setor privado — ainda há muito a caminhar.
O que Luiz relatou não foi um ataque. Foi um retrato. E retratos, quando bem tirados, mostram as rugas e as sombras também.
Muitos portugueses, ao lerem algo assim, se sentem ofendidos. Mas talvez fosse mais produtivo se sentirem alertados. Porque não se trata de criticar Portugal por criticar — e sim de enxergar que o país que tanto acolhe precisa aprender também a proteger.
O que aprendemos com o desabafo do Luiz?
Aprendemos que nem sempre a grama do vizinho é mais verde.
Que emigrar exige coragem — mas também lucidez.
Que trabalhar fora do Brasil pode ser libertador, mas também exaustivo.
Que o glamour da internet esconde o peso da mochila que muitos carregam.
E que dignidade no trabalho não tem nacionalidade, sotaque nem passaporte.
É um direito. E, como todo direito, precisa ser cobrado, exercido e defendido — por quem está dentro e por quem está de fora.
confira o relato na íntegra:
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