DEPORTAÇÃO E HIPOCRISIA: Como Portugal Manda Embora Quem Sustenta sua Economia

Por Tiago Hélcias

De Portugal, onde me instalei em 2022 após quase três décadas de jornalismo no Brasil, observo com um misto de perplexidade e ironia o mais recente capítulo da novela migratória portuguesa: a deportação em massa de quase 34 mil imigrantes, incluindo mais de 5 mil brasileiros. Sim, você não leu errado. O mesmo país que colonizou meio mundo e espalhou seus cidadãos pelos quatro cantos do planeta agora decide que há “gente demais” em seu território.

Mas o que me faz coçar a cabeça, com aquele sorriso de quem já viu esse filme antes, é o timing impecável dessa decisão. Justo quando dados oficiais mostram que os imigrantes contribuíram com o valor recorde de 3,6 mil milhões de euros para a Segurança Social portuguesa em 2024. Um montante que, pasmem, é CINCO VEZES superior ao que é pago em prestações sociais a estrangeiros.

Traduzindo para os menos familiarizados com a matemática governamental: os imigrantes estão literalmente pagando a conta de um país envelhecido, com baixa natalidade e que vê seus jovens talentos fugirem para outras paragens europeias em busca de salários dignos. Mas, claro, a solução óbvia é mandar embora quem está mantendo o barco à tona. Genial, não?

A MATEMÁTICA QUE A EXTREMA-DIREITA PREFERE IGNORAR

Vamos aos números, porque eles são teimosos e não se dobram a discursos populistas. Em 2024, os imigrantes contribuíram com 3,645 mil milhões de euros para a Segurança Social portuguesa. Esse valor duplica o registrado em 2021, quando os estrangeiros entregaram à instituição menos 2,2 mil milhões de euros. Um aumento de 30% em apenas um ano.

O peso dos estrangeiros nas contribuições para a segurança social mais do que duplicou, passando de 6,5% em 2021 para 12,4% em 2024. E quem lidera esse ranking? Nós, brasileiros, com 36,7% do total, seguidos por indianos (6,6%), nepaleses (4,3%), cabo-verdianos (3,9%) e angolanos (3,5%).

Agora, pergunto eu: que país em sã consciência expulsa quem está pagando as contas? Seria como um restaurante expulsar os únicos clientes que ainda pagam a conta completa, com gorjeta e tudo. Mas a lógica política raramente caminha de mãos dadas com o bom senso econômico, não é mesmo?

O PARADOXO PORTUGUÊS: PRECISAMOS DE VOCÊS, MAS NÃO AQUI

Há um fenômeno curioso em Portugal que presencio diariamente: os recém-formados portugueses não ficam no país. E por que ficariam? Portugal oferece os salários mais baixos da Europa Ocidental. Então, o que acontece? Eles vão embora, deixando um vácuo no mercado de trabalho que – adivinhem só – é preenchido pelos imigrantes.

Somos nós, os estrangeiros, que sustentamos os restaurantes, a construção civil, o turismo, a agricultura e, cada vez mais, setores que exigem alta qualificação. Sem essa mão de obra, Portugal simplesmente pararia. E não é exagero meu – é matemática pura.

O ministro português Leitão Amaro definiu o aumento da imigração como “a maior mudança demográfica da nossa história democrática”. De fato, cerca de 1,5 milhão de estrangeiros residem hoje em Portugal, aproximadamente o triplo do número de uma década atrás, representando cerca de 14% da população total.

Mas o que o ministro esqueceu de mencionar é que essa “mudança demográfica” é o que está mantendo o país funcionando. Sem os imigrantes, quem pagaria as aposentadorias dos idosos portugueses? Quem serviria os milhões de turistas que inundam Lisboa, Porto e Algarve todos os anos? Quem construiria os prédios que os portugueses não conseguem comprar porque os preços dispararam?

A ALIANÇA DEMOCRÁTICA E O CHEGA: DANÇANDO CONFORME A MÚSICA POPULISTA

A decisão de deportar milhares de imigrantes não caiu do céu. É fruto direto de uma promessa de campanha da Aliança Democrática (AD), coalizão de centro-direita liderada por Luís Montenegro, que assumiu o poder com um discurso de “controle migratório” e “segurança nacional”. O que antes era uma política de “portas abertas”, implementada pelo governo anterior do Partido Socialista, transformou-se rapidamente em uma política de “portas na cara”.

E por que essa mudança? Simples: o Chega, partido de extrema-direita liderado por André Ventura, fez da imigração sua principal bandeira, pressionando os partidos tradicionais a adotarem posturas mais rígidas. A AD, temendo perder eleitores para o Chega, embarcou nessa retórica, prometendo endurecer as políticas migratórias.

Devo confessar que, até certo ponto, concordo com a necessidade de regular a imigração. Nenhum país pode simplesmente abrir suas fronteiras sem critério algum. O governo anterior, liderado pelo Partido Socialista, escancarou a porta de entrada sob o manto mentiroso de ser um país “inclusivo e mais acolhedor”. Na prática, foi uma medida populista que precisava ser corrigida.

Mas há uma diferença abissal entre regular e expulsar em massa. Entre estabelecer critérios claros e justos e simplesmente dizer “tchau, obrigado pelas contribuições, agora vá embora em 20 dias”.

A MUDANÇA LEGISLATIVA QUE FECHOU AS PORTAS

Até o ano passado, Portugal tinha um mecanismo chamado “manifestação de interesse”, que permitia a estrangeiros que estivessem no país para estudar ou em busca de trabalho solicitar residência permanente. Era uma política inclusiva, que reconhecia a contribuição dos imigrantes para a economia e a sociedade portuguesa.

No entanto, o governo da AD acabou com esse mecanismo. Agora, estrangeiros que queiram morar em Portugal precisam primeiro ter um contrato de trabalho no país ou uma oferta de vaga. Uma mudança que faz parte da plataforma política do Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita, que criticou fortemente o que chamava de política de “portas escancaradas” do governo anterior.

Como jornalista que acompanha a política há décadas, não posso deixar de notar o oportunismo dessa mudança. Em um momento em que a extrema-direita cresce em toda a Europa, partidos tradicionais adotam suas pautas na esperança de conter sua ascensão. Uma estratégia que, historicamente, só fortalece os extremos.

UM FENÔMENO EUROPEU: A EXTERNALIZAÇÃO DAS DEPORTAÇÕES

O que acontece em Portugal não é um caso isolado. Por toda a Europa, vemos um endurecimento das políticas migratórias. A Comissão Europeia apresentou recentemente um novo regulamento que, se aprovado, permitirá aos Estados-membros transferir os requerentes de asilo rejeitados para países distantes onde nunca tenham posto os pés.

É o que especialistas chamam de “externalização” da política migratória: transferir para outros países a responsabilidade de lidar com os imigrantes indesejados. Uma prática que levanta sérias questões éticas e humanitárias.

Países como Itália, Dinamarca e Países Baixos lideram essas discussões, considerando a construção de “centros de retorno” em nações fora da União Europeia. A Itália já avança com planos para transformar seus centros na Albânia, inicialmente destinados a processar pedidos de asilo, em verdadeiros centros de deportação.

Como observador privilegiado desse processo, vejo com preocupação essa tendência. A Europa, continente que se orgulha de seus valores humanitários e democráticos, parece cada vez mais disposta a sacrificar esses princípios em nome de uma suposta segurança e controle de fronteiras.

O IMPACTO HUMANO: ALÉM DOS NÚMEROS

Por trás dos números frios das estatísticas, há histórias humanas. Famílias separadas, sonhos interrompidos, vidas em suspenso. Como jornalista, sempre busquei humanizar as notícias, e não posso deixar de pensar nas milhares de pessoas que, de repente, veem-se obrigadas a abandonar o país onde escolheram viver.

Conheço pessoalmente muitos brasileiros que vieram para Portugal em busca de segurança, estabilidade e oportunidades. Pessoas que contribuem para a economia local, pagam impostos, enriquecem culturalmente o país. Agora, muitos deles vivem na incerteza, temendo receber a notificação que os obrigará a deixar tudo para trás.

É importante lembrar que o Brasil lidera a lista das nacionalidades que mais pediram residência em Portugal, com 73 mil pedidos analisados até agora. Destes, 68 mil foram aprovados, o que representa uma taxa de rejeição de 7,3% - muito menor que a de países como Índia (46,6%), Bangladesh, Paquistão e Nepal (cerca de 25%).

Esses dados mostram que, mesmo com o endurecimento das políticas, os brasileiros ainda têm uma situação relativamente privilegiada. Mas isso não diminui a angústia dos mais de 5 mil compatriotas que agora enfrentam a deportação.

A EUROPA SEM IMIGRANTES: UMA FICÇÃO INSUSTENTÁVEL

Vamos fazer um exercício de imaginação: como seria a Europa sem imigrantes? Quem cuidaria dos idosos? Quem trabalharia nas lavouras? Quem manteria os restaurantes funcionando? Quem construiria as casas e os prédios?

A verdade incômoda é que a Europa precisa desesperadamente de imigrantes. Com sua população envelhecida e taxas de natalidade em queda livre, o continente simplesmente não tem mão de obra suficiente para manter sua economia funcionando.

Mas, ao mesmo tempo, a Europa parece não querer lidar com as consequências culturais e sociais da imigração. Quer os benefícios econômicos sem os “inconvenientes” da diversidade. Quer trabalhadores, mas não vizinhos. Quer contribuintes, mas não cidadãos.

É uma postura esquizofrênica que, no longo prazo, só trará problemas. Porque, como mostram os dados da Segurança Social portuguesa, os imigrantes não são um fardo – são a solução para muitos dos problemas estruturais que a Europa enfrenta.

QUE FUTURO PODEMOS ESPERAR?

A questão que fica é: que futuro queremos para Portugal e para a Europa? Um futuro de isolamento, xenofobia e declínio econômico? Ou um futuro de abertura, diversidade e prosperidade compartilhada?

As deportações em massa em Portugal são um sintoma de uma Europa em crise de identidade. Uma Europa que, pressionada por desafios econômicos, sociais e geopolíticos, parece cada vez mais disposta a sacrificar princípios em nome de soluções aparentemente fáceis.

Como jornalista e imigrante, acredito que precisamos de um debate mais honesto e nuançado sobre imigração. Um debate que reconheça tanto os desafios quanto as oportunidades que os fluxos migratórios trazem. Um debate que trate os imigrantes como seres humanos com direitos e dignidade, e não como problemas a serem resolvidos ou números a serem reduzidos.

Portugal, país que se orgulha de sua história de navegadores e descobridores, que tem milhões de seus filhos espalhados pelo mundo, deveria ser o primeiro a entender que migrar faz parte da condição humana, inclusive a de portugueses. Que ninguém deixa sua terra natal sem motivos fortes. E que uma política migratória justa e humana é não apenas um imperativo moral, mas também uma necessidade econômica.

Enquanto as notificações de deportação continuam a ser enviadas, milhares de vidas permanecem em suspenso. E com elas, também fica em suspenso o futuro de um país que, ironicamente, está expulsando justamente quem o sustenta.

Tiago Hélcias é jornalista com quase três décadas de vivência no front da notícia — do calor das ruas aos bastidores da política. Atua como apresentador, redator e produtor de conteúdo em rádio, TV e plataformas digitais. É pós-graduado em Marketing Político, especialista em Comunicação Assertiva e mestrando em Comunicação Digital em Portugal.

Aqui no blog, escreve com liberdade, opinião e um compromisso claro: provocar o leitor a pensar fora da caixa.

Siga nas redes para continuar a conversa

Acesse: https://linklist.bio/tiagohelcias

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mordaça Seletiva: Quando o riso vira crime e o crime vira piada

CARTA AO AMIGO ANDRÉ BARROS: A ÚLTIMA PAUTA E O ADEUS QUE NUNCA SERÁ DEFINITIVO