SÃO JOÃO ALÉM-MAR: UMA CRÔNICA JUNINA ENTRE BRASIL E PORTUGAL
“Junho tem cheiro. Tem barulho. Tem cor, tem gosto e tem memória.”
Quem nasceu no Nordeste do Brasil sabe que quando esse mês chega, o coração bate diferente. A alma parece se aquecer como a fogueira no meio da rua. Em Sergipe, eu bem sei, o São João não é só festa: é identidade. É um tempo sagrado onde a fé, a cultura e a alegria se entrelaçam, iluminando vilarejos e cidades com bandeirolas, rojões e muita música.
Mas o que poucos se dão conta é que esse São João tão nosso começou lá longe, do outro lado do Atlântico. Foi em Portugal, de onde partiram tradições que cruzaram oceanos e ganharam novo ritmo, nova cor, novo sotaque.
Hoje, vivendo em Portugal, percebo mais nitidamente os fios que ligam essa festa que me formou, e os caminhos que ela percorreu para se reinventar entre o sertão e a Europa.
Os três santos populares: fé que atravessa o tempo
A espinha dorsal das festas de junho — tanto no Brasil quanto em Portugal — são os três santos católicos: Santo Antônio, São João e São Pedro.
Santo Antônio nasceu em Lisboa no século XII. Aqui, em Portugal, é venerado como grande pregador, sábio e protetor dos pobres. No Brasil, especialmente no Nordeste, ele virou o “santo casamenteiro”, daqueles que recebem simpatias em papel dobrado, bilhetes no pão e velas com pedidos de amor.
São João, primo de Jesus, é celebrado com ainda mais euforia. No Brasil, ele é o grande protagonista. É dele o nome da festa, é dele o dia mais esperado: 24 de junho. O nordeste para. As quadrilhas tomam as praças, o forró esquenta os salões, as fogueiras tomam conta das esquinas. Em Portugal, São João reina absoluto no Porto e em Braga, onde multidões saem às ruas com martelinhos de plástico, alhos-porros e sardinhas assadas. É uma mistura de devoção, tradição e folia que também emociona.
Adendo histórico-cultural:
E falando em tradição e história, vale lembrar que o dia 24 de junho, além de ser o dia de São João, carrega também um peso simbólico muito forte para Portugal. Em Guimarães — conhecida como o berço da nação portuguesa — celebra-se nesse mesmo dia a Batalha de São Mamede, ocorrida em 1128, considerada por muitos historiadores como o marco inicial da independência de Portugal. A data é comemorada com orgulho pelos vimaranenses, e há, inclusive, um movimento que defende a elevação do dia 24 de junho a feriado nacional em homenagem a esse importante momento da construção da identidade portuguesa.
O chefe do céu
E há ainda São Pedro, que encerra o ciclo junino no dia 29 de junho. No Brasil, é o responsável pelas últimas fogueiras. Em Portugal, brilha em cidades como Póvoa de Varzim e Sintra, com procissões, arraiais e festas que unem o sagrado e o profano de forma muito própria.
confira a programação de Braga:
https://www.saojoaobraga.pt/sao-joao-de-braga-historia/
Entre a canjica e a sardinha
No Brasil, o São João tem cheiro de milho cozido, pamonha, canjica e bolo de puba. Em Portugal, tem cheiro de sardinha assada, pão e vinho tinto. Lá, é sanfona, zabumba e triângulo. Aqui, é concertina, cavaquinho e marchas populares. Lá, é arrasta-pé. Aqui, é marcha pelas ladeiras.
Mas ambos têm em comum algo fundamental: a celebração coletiva. O desejo de reunir a comunidade, de festejar a colheita, de agradecer e de amar.
Do forró ao fado: o olhar de um sergipano entre dois mundos
Como nordestino e sergipano, cresci em um estado onde o os festejos juninos são são levados a sério. Sergipe se transforma. Aracaju, Capela, Estância, Socorro, Areia Branca, Itabaiana… Cada cidade com sua marca, seu sotaque junino. A gente competia pelas melhores quadrilhas, pelos maiores fogos, pelas comidas mais cheirosas. O céu era tomado por balões (quando ainda eram permitidos), e o chão, pelo calor da fogueira e da dança.
E não posso deixar de fazer aqui um adendo: minha visão sobre o São João também é atravessada pela minha trajetória como profissional de imprensa. Ao longo da minha carreira, tive a honra de participar de várias transmissões ao vivo dos festejos juninos, tanto pela TV Aperipê quanto pela TV Caju — verdadeiras escolas para mim. Nessas coberturas, tive a oportunidade de vivenciar os bastidores da festa, conhecer de perto grandes artistas do cancioneiro popular brasileiro e me aproximar com carinho e respeito dos artistas sergipanos, que mantêm viva a chama do forró autêntico.
confira reportagem para a Tv Cultura:
Transmissão Forro Cajú 2007 / Entrevistas:
Foi também com esse olhar jornalístico que pude enxergar a grandiosidade dessa celebração, entendendo sua força cultural, seu impacto econômico e sua capacidade de reunir milhares de pessoas em torno da música, da fé e da tradição.
Hoje, vivendo em Portugal, vejo essa festa com um olhar dividido — mas jamais rompido. Sinto saudade do milho na brasa, do forró pé-de-serra, da poeira subindo nas festas do interior. Mas também me encanto com as celebrações daqui.
Lisboa celebra Santo Antônio com ruas enfeitadas, marchas animadas, cheiro de sardinha no ar e janelas com manjericos. O Porto se transforma na maior celebração popular do país, com gente de todas as idades andando pelas ruas até o amanhecer, sob fogos de artifício, soltando balões e trocando marteladas amistosas na cabeça.
E no Norte de Portugal, Braga vive intensamente o período dos santos populares. Durante vários dias, a cidade é tomada por procissões, celebrações religiosas, missas campais, atrações culturais e ruas lindamente enfeitadas. A fé católica se mistura à festa, transformando a cidade num espetáculo de devoção e alegria.
São celebrações diferentes, mas que compartilham um mesmo DNA: a necessidade humana de celebrar a vida, a fé, a fartura e o amor.
Singularidades e semelhanças
Se o Brasil reinventou os santos populares com cor, calor e gingado, Portugal conserva suas raízes com intensidade, religiosidade e beleza própria. Aqui, não há grandes festas juninas no estilo nordestino — com trios de forró, bandeirolas em profusão, trajes caipiras. Mas há arraiais nos bairros, festas comunitárias, e muito sentimento envolvido.
No fundo, há algo universal que une tudo isso: o pertencimento. A ideia de que, ao celebrar os santos, celebramos a nós mesmos — nossa história, nossos afetos, nossos ciclos.
Uma fogueira que nunca se apaga
Hoje, quando vejo uma sardinha assando na brasa portuguesa, lembro do milho queimando na fogueira de Capela. Quando ouço uma concertina tocar, minha mente completa com uma sanfona nordestina. E quando sinto o friozinho de junho em Braga, minha memória aquece com as noites quentes no terreiro da infância.
Entre dois mundos, aprendi que o São João não é um lugar. É um sentimento. Um tempo sagrado que mora na memória e no coração. Não importa onde se esteja — se no Sertão ou em Sintra, em Aracaju ou em Lisboa, em Estância ou em Braga —, o que se celebra é a vida. E isso, a gente nunca esquece.
Comentários