O PACOTE DE MALDADE DO CHEGA, O SILÊNCIO DO GOVERNO E A CUMPLICIDADE DE MUITOS IMIGRANTES
Para quem está no Brasil e acompanha com interesse a situação política de Portugal — seja por afinidade, curiosidade ou por planos de imigração — é fundamental entender o momento atual do país.
Portugal passou por novas eleições legislativas em maio de 2025, convocadas após uma crise política envolvendo o primeiro-ministro Luís Montenegro, da Aliança Democrática (AD). Ainda assim, a AD foi reconduzida ao poder, e Montenegro mantém-se como primeiro-ministro, mas agora terá que negociar apoios no Parlamento para conseguir governar com estabilidade.
Mas o maior abalo no xadrez político português veio com a ascensão da extrema-direita: o partido Chega, liderado por André Ventura, consolidou-se como a segunda maior força política no Parlamento, ultrapassando o próprio PS. Com esse novo peso político, o Chega tem pautado o debate público com propostas duras — e muitas vezes controversas — sobretudo no campo da imigração.
É nesse contexto que surge um projeto de lei apresentado pelo partido, propondo mudanças radicais na Lei da Nacionalidade, que afetam diretamente imigrantes — especialmente brasileiros e cidadãos da CPLP — que vivem ou pretendem viver em Portugal.
Confesso: Por muito tempo, vi com simpatia algumas ideias do partido Chega. Não tenho problema em admitir. Como jornalista, imigrante e cidadão sempre acreditei — e continuo acreditando — que Portugal precisa de regras claras, de um controle migratório responsável e de políticas públicas que promovam integração de verdade, e não apenas “retórica barata”. Não é razoável que qualquer um chegue, entre, fique, fique pendurado nas tetas do governo, recebendo subsídios eternos e ponto final. Mas também não é aceitável o que está a ser feito agora, de forma autoritária, populista e, acima de tudo, desumana.
O blog teve acesso ao documento oficial do Projeto de Lei n.º 20/XVII/1.ª, protocolado no último dia 11 de junho de 2025, no Parlamento, pelo grupo parlamentar do Chega.
O conteúdo é um verdadeiro pacote de maldades travestido de zelo patriótico. Entre as medidas propostas, estão mudanças profundas na Lei da Nacionalidade, com endurecimento de critérios para aquisição, revogação de direitos adquiridos e até perda da nacionalidade portuguesa em certas situações — inclusive baseadas em comportamentos e opiniões.
“A nacionalidade portuguesa representa muito mais do que um estatuto legal”, afirma o texto, apelando ao hino nacional, à identidade cultural e à “ligação profunda com o território”.
Mas quando lemos com atenção o que está proposto, o que se vê é um plano para transformar a nacionalidade portuguesa numa espécie de propriedade moral do Chega, sob vigilância constante.
A proposta prevê, por exemplo, que filhos de estrangeiros nascidos em Portugal só possam obter nacionalidade se os pais tiverem residência legal por 6 anos (se forem da CPLP) ou 10 anos (se forem de outros países). Um retrocesso brutal em relação ao que havia sido aprovado em 2024, quando bastava comprovar dois anos de residência legal — ou, em alguns casos, até menos.
E tem mais: Naturalizados poderão perder a nacionalidade se forem condenados por determinados crimes, ou mesmo se praticarem atos que “ofendam de forma ostensiva a Nação e os seus símbolos”. Está escrito. Literalmente.
Pergunto: O que significa “ofender de forma ostensiva”? Criticar o governo entra nisso? Questionar a história colonial também?
O projeto ainda cria o famigerado “Teste Nacional de Integração e Cidadania”, obrigatório para todos os estrangeiros que queiram naturalizar-se, com perguntas sobre “valores democráticos”, “cultura portuguesa” e “organização da sociedade”.
A ideia, em tese, não é absurda — muitos países fazem isso, a Espanha, por exemplo, há muito tempo impõe esse critério. Mas a pergunta que fica é: quem vai preparar esse teste? Com base em qual visão de Portugal? Sob que viés ideológico?
E o governo eleito? E as tais associações de imigrantes? Vão reagir ou vão fingir normalidade?
O silêncio do governo, liderado pelo PSD — recém-reeleito — sobre esse projeto é, no mínimo, estranho. O Executivo ainda não emitiu nenhuma posição oficial clara contra a proposta. Não vimos nem um repúdio, nem uma defesa enfática dos valores democráticos e inclusivos que tanto apregoaram na campanha.
Será que estão com medo de desagradar o eleitorado mais conservador? Ou será que consideram o projeto do Chega “inofensivo” o suficiente para deixar passar? Onde está a coragem política?
O silêncio das diversas associações de imigrantes também me incomoda. Muitas são reconhecidas pelo poder público, fazem um certo trabalho de acolhimento e orientação, porém permanecem de boca calada.
O erro dos imigrantes que aplaudem o seu próprio carrasco
Mais inquietante ainda é ver muitos imigrantes — especialmente brasileiros — aplaudindo essas propostas. Alguns porque já conseguiram sua documentação e agora querem fechar a porta. Outros por pura ingenuidade ou simpatia com o discurso de “ordem e progresso”. O problema é que, ao apoiar esse tipo de medida, estão alimentando uma estrutura legal que amanhã poderá se voltar contra eles mesmos.
Sim, quem é hoje legalizado, que tem nacionalidade portuguesa, que paga impostos e vive de forma exemplar, também poderá ser alvo, se tiver a “ousadia” de criticar, de se posicionar, de não se calar.
Olha o exemplo atual do Brasil, onde a tal “democracia seletiva” só vale se for pra quem pensa igual a quem está no poder. Ou seja, Não há garantias quando se abre a porta para leis vagas, punitivas e subjetivas.
É hora de fazer barulho — ou amanhã será tarde
Eu sigo acreditando que é preciso controle, que o sistema migratório precisa de revisão, que a integração deve ser levada a sério. Mas isso não pode se transformar em perseguição, em caça às bruxas ou em nacionalismo revanchista.
O que o Chega está a propor é um retrocesso civilizacional. Portugal precisa ser justo, firme e inteligente. E, acima de tudo, coerente. Se este projeto avançar, estaremos todos menos livres. Portugueses de nascimento ou por escolha.
A nacionalidade portuguesa não pode ser tratada como um favor, um privilégio condicional ou uma coleira ideológica.
veja a íntegra do documento:
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