DIA DE PORTUGAL: ENTRE O PASSADO GLORIOSO E OS DESAFIOS DO FUTURO
Do outro lado do atlântico, em terras lusitanas, onde resido desde 2022, observo hoje, 10 de junho, as comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas com um olhar ao mesmo tempo próximo e distanciado. Como jornalista brasileiro tenho o privilégio de vivenciar o cotidiano deste país fascinante, enquanto mantenho a perspectiva crítica de quem vem de fora.
Neste dia especial, proponho um raio X de Portugal: um país que, apesar de pequeno em dimensões, carrega o peso de um passado grandioso e enfrenta desafios monumentais para seu futuro.
O SIMBOLISMO DE UMA DATA
O 10 de junho não é uma data qualquer. Celebra-se o dia da morte de Luís Vaz de Camões, em 1580, o maior poeta português e autor de "Os Lusíadas", obra que imortalizou os feitos marítimos de Portugal. A escolha desta data como feriado nacional é, por si só, reveladora: um país que se define não por uma batalha ou revolução, mas pela morte de um poeta.
Ao longo dos anos, esta data foi ganhando diferentes significados. Durante o Estado Novo, era celebrado como o "Dia da Raça", exaltando o império colonial. Após a Revolução dos Cravos, em 1974, transformou-se no "Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas", reconhecendo a importância da diáspora portuguesa espalhada pelo mundo.
Esta evolução reflete as transformações de um país que passou de potência colonial a nação europeia moderna, que busca reconciliar-se com seu passado enquanto tenta construir um futuro sustentável.
PORTUGAL NA EUROPA: O PEQUENO NOTÁVEL
Na União Europeia, Portugal ocupa uma posição peculiar. Geograficamente periférico, economicamente modesto quando comparado às grandes potências do bloco, mas com uma influência cultural e diplomática que frequentemente surpreende.
Em 2025, a economia portuguesa mantém uma trajetória de crescimento moderado, destacando-se positivamente no contexto europeu. Segundo o Banco de Portugal, o país deverá crescer 2,3% este ano, acima da média da zona euro. Um desempenho que, embora não espetacular, demonstra resiliência num contexto global desafiador.
Portugal tem se posicionado como uma ponte entre a Europa e outros mundos: o lusófono (através da CPLP), o latino-americano (especialmente com o Brasil) e, cada vez mais, como porta de entrada para investimentos asiáticos no continente europeu.
No entanto, esta posição intermediária também traz vulnerabilidades. Como economia aberta e dependente do turismo e de investimentos externos, Portugal sofre com as oscilações da economia global. A recente crise inflacionária e o aumento das taxas de juros pelo Banco Central Europeu afetaram particularmente as famílias portuguesas, com elevado endividamento em crédito habitação.
AS TRANSFORMAÇÕES DE UM PAÍS EM MOVIMENTO
Portugal mudou radicalmente nas últimas décadas. De país de emigração, tornou-se destino de imigração. De economia predominantemente agrícola e industrial, transformou-se em economia de serviços. De sociedade conservadora e homogênea, evoluiu para uma sociedade mais diversa e cosmopolita.
A transformação demográfica é talvez a mais visível. Segundo dados recentes, a população estrangeira residente em Portugal cresceu 90% nos últimos dez anos. Hoje, cerca de 1,5 milhão de estrangeiros vivem no país, representando aproximadamente 14% da população total.
Os brasileiros lideram este contingente, seguidos por comunidades de países como Angola, Cabo Verde, Índia, Nepal e, mais recentemente, um número crescente de europeus e americanos que escolhem Portugal como destino para viver ou se aposentar.
Esta nova realidade multicultural é particularmente visível nas grandes cidades como Lisboa e Porto, onde restaurantes étnicos, lojas especializadas e manifestações culturais diversas transformaram a paisagem urbana. Mas também se estende a cidades médias e até pequenas localidades do interior, onde imigrantes têm revitalizado comunidades em declínio demográfico.
OS DESAFIOS DE UM PAÍS ENVELHECIDO
Portugal enfrenta hoje um dos mais graves problemas demográficos da Europa. É o 5º país mais envelhecido do mundo, com mais de 157 idosos por cada 100 jovens. A taxa de natalidade (1,4 filhos por mulher) está muito abaixo do nível de reposição populacional.
Este envelhecimento coloca pressão sobre o sistema de segurança social e de saúde, enquanto a escassez de mão de obra em setores-chave da economia se torna cada vez mais evidente.
É aqui que entra o papel fundamental dos imigrantes. Em 2024, as contribuições de estrangeiros para a Segurança Social portuguesa atingiram o valor recorde de 3,6 mil milhões de euros, representando 12,4% do total. Um montante cinco vezes superior ao que é pago em prestações sociais a estrangeiros.
Estas contribuições equivalem ao pagamento de quase 500 mil pensões/aposentadorias. Sem os imigrantes, o sistema previdenciário português estaria em situação ainda mais precária.
Além da contribuição financeira direta, os imigrantes têm ajudado a revitalizar áreas como a agricultura, construção civil, restauração e turismo, setores que enfrentavam grave escassez de mão de obra. Também têm contribuído para a dinamização do mercado imobiliário e para o aumento do consumo interno.
A CONTRADIÇÃO PORTUGUESA
Apesar desta contribuição inegável, Portugal vive hoje uma contradição. O mesmo país que se beneficia economicamente da imigração começa a mostrar sinais de resistência a este fenômeno.
Nas últimas eleições, o partido de extrema-direita Chega, com discurso anti-imigração, obteve um crescimento expressivo. O governo atual, liderado pela Aliança Democrática, tem adotado medidas mais restritivas, como o fim do mecanismo de "manifestação de interesse" que permitia a regularização de imigrantes já em território português.
Recentemente, o país anunciou a expulsão de quase 34 mil imigrantes que tiveram seus pedidos de residência rejeitados. Uma decisão que gerou polêmica e críticas de organizações de direitos humanos.
Esta postura contraditória reflete tensões sociais e culturais que o rápido aumento da imigração tem gerado. Problemas como a especulação imobiliária nas grandes cidades, a precarização do trabalho em alguns setores e a sobrecarga de serviços públicos são frequentemente associados à imigração, embora suas causas sejam muito mais complexas.
O FUTURO: ENTRE OPORTUNIDADES E INCERTEZAS
Olhando para o futuro, Portugal enfrenta desafios significativos, mas também oportunidades únicas. O plano Portugal 2030, que define as prioridades de investimento dos fundos europeus para os próximos anos, aposta em áreas como transição digital, sustentabilidade ambiental e coesão territorial.
O país tem se posicionado como hub tecnológico, atraindo startups e nômades digitais, aproveitando vantagens como qualidade de vida, segurança e custos relativamente baixos quando comparados a outros destinos europeus.
A transição energética também representa uma oportunidade, com Portugal apostando fortemente em energias renováveis. O país já produz mais de 60% de sua eletricidade a partir de fontes renováveis e tem ambiciosos planos para o hidrogênio verde.
No entanto, desafios estruturais persistem. Os salários portugueses continuam entre os mais baixos da Europa Ocidental, o que alimenta a emigração de jovens qualificados. O acesso à habitação tornou-se um problema crítico, com preços incompatíveis com os rendimentos médios, especialmente nas grandes cidades.
A dependência do turismo, embora importante fonte de receitas, também traz vulnerabilidades, como ficou evidente durante a pandemia. E a baixa produtividade da economia portuguesa continua a ser um entrave ao crescimento sustentado.
REFLEXÕES DE UM OBSERVADOR PRIVILEGIADO
Como jornalista que observa Portugal de dentro, mas com a perspectiva de quem veio de fora, vejo um país de contrastes fascinantes. Uma nação que carrega o peso de um passado glorioso, às vezes como inspiração, outras como fardo.
Portugal é um país que se reinventa constantemente, que absorve influências externas sem perder sua identidade profunda. É uma sociedade que, apesar de todas as dificuldades, mantém uma qualidade de vida invejável, com níveis de segurança, coesão social e bem-estar que muitos países maiores e mais ricos não conseguem oferecer.
Mas é também um país que precisa enfrentar seus fantasmas: o envelhecimento populacional, a baixa produtividade, a dependência de setores econômicos vulneráveis, a desigualdade regional e a tentação de soluções simplistas para problemas complexos.
Neste Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, olho para este pequeno grande país com admiração por seu passado, respeito por seu presente e esperança em seu futuro. Um futuro que, inevitavelmente, será construído não apenas pelos portugueses de nascimento, mas também por aqueles que, como eu, escolheram Portugal como sua casa.
E talvez seja esta a maior lição que Portugal tem a oferecer ao mundo: a capacidade de se reinventar, de absorver o novo sem perder sua essência, de ser simultaneamente local e global. Uma lição que Camões, o poeta que hoje se celebra, certamente aprovaria.
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