QUANDO A VERDADE VIROU CRIME — O PARLAMENTO EUROPEU GRITA O QUE MUITOS GOVERNOS (INCLUSIVE BRASIL) TENTAM CALAR
POR TIAGO HÉLCIAS
No dia 22 de outubro de 2025, o Parlamento Europeu foi palco de um debate que ultrapassou as fronteiras políticas e entrou no território mais sensível de todos: o da liberdade de imprensa. O tema, que ganhou ainda mais peso com o anúncio dos laureados do Prêmio Sakharov para a Liberdade de Pensamento, transformou a sessão parlamentar num símbolo da resistência contra o autoritarismo — não apenas o explícito, de regimes como o de Belarus, mas também aquele disfarçado de legalidade, que se insinua em democracias cansadas e sistemas midiáticos corroídos pelo medo e pela dependência econômica.
Enquanto eurodeputados discutiam a preparação para o Conselho Europeu, a voz da presidente Roberta Metsola soou como um eco de alerta ao anunciar os vencedores do prêmio: Andrzej Poczobut, da Bielorrússia, e Mzia Amaglobeli, da Geórgia. Dois jornalistas presos por exercer o direito — e o dever — de informar. Dois símbolos de uma profissão que, em pleno século XXI, ainda é punida por dizer a verdade.
VOZES SILENCIADAS, MAS NÃO ESQUECIDAS
Poczobut e Amaglobeli representam o que há de mais puro — e mais perigoso — no jornalismo: a recusa em se curvar ao poder.
O primeiro, jornalista e ativista da minoria polonesa em Belarus, está preso desde 2021. Condenado a oito anos numa colônia penal, Poczobut sofre com a saúde debilitada e a recusa sistemática de atendimento médico e visitas familiares. Seu “crime”? Escrever. Denunciar. Questionar.
A segunda, diretora dos portais Batumelebi e Netgazeti, tornou-se a primeira mulher jornalista prisioneira política da Geórgia, acusada de participar de protestos antigovernamentais. Desde janeiro de 2025, está atrás das grades por não aceitar o silêncio imposto por um governo que teme a opinião pública.
O Parlamento Europeu não apenas condenou essas prisões — chamou-as pelo nome: perseguição política. A sessão de hoje foi, na prática, uma denúncia coletiva da criminalização do jornalismo, uma ferida que atravessa continentes e sistemas políticos. A liberdade de expressão, como foi lembrado em plenário, não é uma abstração — é o termômetro da saúde democrática de uma nação.
O ECO DAS PALAVRAS: UM DEBATE SOBRE O FUTURO DO JORNALISMO
Mas o debate não se restringiu aos casos individuais. Deputados de diferentes bancadas alertaram para o que chamaram de “erosão silenciosa da liberdade de imprensa na própria União Europeia”. Leis que ampliam o controle estatal sobre a mídia, vigilância sob pretexto de segurança, e dependência financeira de governos e grandes corporações estão, pouco a pouco, redesenhando o mapa da liberdade jornalística europeia.
O mais recente relatório do European Centre for Press & Media Freedom (ECPMF) revelou 709 violações à liberdade de imprensa em 36 países europeus apenas no primeiro semestre de 2025. Jornalistas perseguidos, redações processadas, veículos sufocados economicamente. Uma tendência que assusta, sobretudo, porque nasce dentro das democracias — e não fora delas.
Hoje, o Parlamento discutiu isso de frente: a necessidade de proteger os repórteres, garantir independência editorial e reforçar a aplicação da European Media Freedom Act (EMFA), uma lei que, ironicamente, ainda engatinha enquanto a censura se reinventa nos bastidores.
DO OUTRO LADO DO ATLÂNTICO: O MESMO PREÇO, A MESMA LUTA
E se a Europa chora seus mártires da liberdade, o Brasil continua a pagar sua própria conta.
A Constituição de 1988 garante em letras garrafais o direito à livre manifestação do pensamento e à liberdade de imprensa. Mas, como em tantas outras promessas da Carta Magna, o papel é mais livre do que a realidade.
O jornalismo independente — aquele que não se curva, que não tem dono, que não se vende — vive sob constante cerco. Entre o desmonte econômico dos veículos, o avanço da desinformação e o uso da justiça como ferramenta de intimidação, ser jornalista no Brasil é, muitas vezes, um ato de resistência pessoal. A Repórteres Sem Fronteiras apontou que, em 2024, houve um ataque a jornalistas a cada cinco dias no país. As redações estão mais pobres, as vozes mais cautelosas e o medo mais presente.
E eu falo com conhecimento de causa.
São quase trinta anos de jornalismo — de rádio, TV, redação, cobertura política e de rua. Hoje, atuo de forma independente, livre de amarras empresariais e partidárias. Mas liberdade, nesse ofício, tem custo. E eu pago esse preço todos os dias.
Paguei quando critiquei poderosos.
Paguei quando dei voz a quem o sistema insistia em calar.
E continuo pagando, porque a verdade, no Brasil e no mundo, incomoda quem vive do privilégio da mentira.
A LIÇÃO DO PARLAMENTO EUROPEU
O que se viu em Estrasburgo foi mais do que uma cerimônia. Foi um grito político. O Parlamento Europeu mandou um recado claro: sem jornalismo livre, não há democracia possível.
E essa lição vale também para o Brasil — onde jornalistas são ameaçados, descredibilizados, ridicularizados ou processados por fazerem exatamente o que deveriam fazer: fiscalizar o poder.
A sessão desta terça-feira reafirmou o que muitos tentam negar: a imprensa não é inimiga, é um pilar civilizatório. Quando jornalistas são presos, calados ou empobrecidos, não é o repórter que perde. É a sociedade inteira que mergulha na escuridão da ignorância.
A PALAVRA COMO ATO DE CORAGEM
De Poczobut a Amaglobeli, da Geórgia a Sergipe e Alagoas, o fio é o mesmo: a coragem de não se calar.
E se o Parlamento Europeu hoje ergueu a voz em defesa da liberdade de imprensa, é porque entende que a história tem um ciclo perigoso — o da repetição. Regimes nascem quando a verdade morre.
Por isso, mais do que uma causa, o jornalismo é um compromisso com o povo. E quem, como eu, escolheu essa profissão por convicção — e não por conveniência — sabe que o preço da verdade é alto, mas o custo do silêncio é infinitamente maior.
Tiago Hélcias é jornalista com quase três décadas de vivência no front da notícia — do calor das ruas aos bastidores da política. Atua como apresentador, redator e produtor de conteúdo em rádio, TV e plataformas digitais. É pós-graduado em Marketing Político, especialista em Comunicação Assertiva e mestrando em Comunicação Digital em Portugal.
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